Querido diário (dois pontos)

Acabei de passar um mês fora do país, de férias, e seria bem fácil, bem fácil mesmo, citar nesse relato qualquer vontade de ir embora do Brasil. Adianto que não vai rolar. Minha vida pode até render umas páginas no #classemédiasofre (o Burger King tá mais caro ou é impressão?), mas essa vertente mimimística brasileira nunca me pareceu a maneira mais sensata de se lidar com os problemas daqui (não sei qual seria também, vale registrar). Nada contra quem queira fazer as malas e sumir. Acho legítimo. Só não é uma solução pra mim, por enquanto.E por mais que São Paulo tenha se esforçado hoje para destruir o amor que sinto por ela, gosto de viver aqui. Meus amigos, os melhores do mundo, estão aqui. Minha família, a melhor do mundo, também. São Paulo te coloca contra a parede todos os dias, mas hoje ela me deu um chute bem dado nos colhões.

Quase um mês depois da estreia, resolvi que queria assistir a Transformers 3 (opa, podem me julgar) em 3D e uma das salas mais próximas de casa era a do Cinemark Eldorado. Sessão única, às 12h40. Chamei o Diogo, grande amigo que fez essa última viagem comigo, e fomos (Diogo é tão bróder que topa esse tipo de roubada sem pensar). Raramente vou ao Eldorado, mas nunca tive problemas com o Cinemark de lá, que me parecia mais organizado e tranquilo que os do shoppings Paulista e Santa Cruz.

A primeira coisa estranha rolou no meio do filme, fruto da desatenção do projecionista (que, pelo horário, provavelmente estava sozinho cuidando de todas as salas do multiplex, algo bem comum em redes assim). A música “O Tempo”, do Móveis Coloniais de Acaju, invadiu a sala, interrompedo o áudio do filme, que continuou a rolar. Foram 2 minutos ouvindo a boa canção do Móveis servir de trilha para Bumblebee e Optimus Prime - algo como ter a Ivete na trilha de Inception ou Radiohead em Bruna Surfistinha.

O problema foi corrigido depois que um espectador avisou o segurança.

40 minutos depois, os Decepticons destruíam Chicago (vi parte desses sets ano passado em uma viagem, tinha curiosidade pela cena) quando eu e Diogo ouvimos barulho vindo do fundo da sala. Algo como tecidos se retorcendo, papel queimando, gente se levantando e as cadeiras retráteis voltando à posição normal. Como conseguimos ouvir barulhos NO MEIO DE UM CLÍMAX DE UM FILME DO MICHAEL BAY eu não sei. Pensamos na hora em algo tipo um incêndio na cabine de projeção. Me virei e vi três homens em pé, apontando dedos. Na tela, Shia LaBeouf escorregava pelo andar de um prédio quebrado ao meio por algum robô gigante humanizado.

Então vi um dos homens, um senhor que aparentava 50 anos, tomar um soco, Tudo o que eu conseguia ouvir (efeitos sonoros de Transformers à parte) eram mulheres e uma garotinho de uns 10, 11 anos gritando “PARA, PARA”. Eles não pararam. Caíram no chão de uma das fileiras, trocando socos. Só conseguia ver pernas e braços e um deles recebendo um chute. A sala inteira já havia notado que algo estranho acontecia. Os homens correram pelas fileiras superiores, trocando sopapos, enquanto um cara atrás de mim, exaltado e tentando proteger a mulher, os ameaçava aos gritos de “Vou arrebentar vocês!”.

Notei que algumas pessoas se abaixaram, temendo que algum deles estivesse armado. Nada indicava a presença de uma arma ali. A única explicação que tenho para a reação dessas pessoas foi a lembrança da tragédia da sessão de Clube da Luta no Shopping Morumbi, em 1999. Confesso que eu mesmo me encolhi na poltrona e pensei na possibilidade de um novo Mateus da Costa Meira na sessão. Duas garotas citaram a tragédia de 99 em conversa comigo. 12 anos depois, o trauma ainda existe.

A briga continuava e eu imaginei que a qualquer momento a projeção seria interrompida e seguranças invadiriam a sala para controlar a situação. Mas o filme continuou por uns 5 minutos e só parou depois que duas mulheres, apavoradas e histéricas, saíram correndo da sala, gritando por socorro. Eu e Diogo não sabíamos bem o que fazer até eu notar uma garota do meu lado esquerdo, estática na poltrona. Me aproximei dela, perguntei se ela estava bem, se queria ajuda para sair da sala. Ela chorava e disse que não conseguia se mexer. Ao se abaixar, temendo tiros (ela também se lembrou da história de 99 e a citou depois), ela havia deslocado uma prótese interna que tinha na perna e não conseguia andar. Pedi para que o Diogo ficasse com ela enquanto eu chamava um segurança para ajudar a tirá-la da sala. A garota não parou de chorar pelos 20 minutos seguintes. Ficamos com ela até a mãe chegar.

Dois dos envolvidos na briga fugiram. A segurança do shopping Eldorado não os localizou até o momento em que saí de lá. O senhor de meia-idade, pai do garotinho que gritava “PARA PARA” pouco antes, sangrava pela boca e orelha. Ficou aos cuidados da segurança do cinema. Uma garota que estava sentada atrás deles e presenciou o começo da briga me contou que o moleque passou a sessão inteira fazendo barulho, incomodando quem estava por perto. Dois caras pediram a ele, de maneira respeitosa, que fizesse silêncio. O pai não gostou e os ameaçou, dizendo que iria “fodê-los”.  O show de horrores supostamente começou assim, com uma criança sendo mal educada e um pai corroborando esse comportamento (e ameaçando quem o contrariasse).

Clichêzão, mas verdade: não interessa como ou quem começou a pancadaria. O resultado da estupidez de 3 sujeitos foram 40 pessoas em pânico, mulheres e crianças chorando e uma garota ferida no meio de uma sessão de um filme infantil.

Não vi polícia por lá, e não vi ninguém os chamando. Disse três vezes ao gerente do Cinemark Eldorado que ele precisava chamá-los. Ouvi dele que só o agredido poderia fazer isso e que a segurança do shopping tomaria conta da situação. O Cinemark devolveu o dinheiro de quem preferiu abandonar a sessão, ofereceu convites-cortesia e continuou o filme para quem ainda estivesse no clima de ver os 10 últimos minutos de Transformers (nem um terço da sala).

Estresse suficiente para um dia, certo?

Meia hora depois, peguei um táxi para casa, lá mesmo, no Eldorado. Contei ao taxista a história toda. Ele disse que tinha ouvido caso parecido em um cinema de Taboão da Serra e começou a falar que estávamos criando uma geração de crianças mal educadas, de garotos mimados. Concordei, meio que para cortar o assunto.

Mas ele continuou (minha estratégia de cortar papo com taxista é um fracasso) e começou a dar exemplos do conceito dele de malcriação. “Veja só o tanto de garotos que saem por aí abraçados com outros garotos em vez de procurar uma mulher para constituir família… Em vez de arrumarem uma mulher, viram gayzinhos”.

Minha paciência para taxistas reaças costuma ser bem maleável, mas não deu. Respondi que ser gay não tinha absolutamente nada a ver com má-criação ou má-educação, e que ele estava enganado. Ele retrucou: “Ah, não? Veja bem, como se formam países?”.

Não entendi a colocação, mas ele esperava que eu respondesse “com famílias”, porque é esse o discurso que Bolsonaros repetem por aí todos os dias. Porque ele acredita que gays destroem as famílias. Que gays se multiplicam o tomam o espaço de heterossexuais. Que heterossexuais não procriam mais por causa dos gays. Que a população mundial parou de crescer desde que dois homens treparam pela primeira vez. Que gays são uma ameaça à nação.

Respondi à pergunta dele com “Espero que um país bom se forme com menos pessoas como o senhor à solta”. Complementei dizendo a ele que sou gay e que gays existem desde sempre. Parado num semáforo da Paulista, o taxista ficou sem reação. Só conseguia balbuciar “veja bem, não quis te ofender”, que é o que gente covarde assim responde quando se vê confrontada pela primeira vez.

Pedi que ele parasse o carro, tirei uma nota de 20 do bolso e perguntei:

- Você aceita dinheiro de gay?

Ele não respondeu. Depois de eu ameaçar abrir a porta do carro em movimento, ele parou. Fiz questão de pagar a corrida e joguei a nota de 20 reais no banco da frente (até ali, o taxímetro marcava 18).

Se vou para o inferno por ser gay e “destruir nações”, imagino que terei a companhia de gente como esse taxista, que aceita o meu dinheiro sem reclamar.

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